quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O Contestado - Restos Mortais

Como explicar uma guerra? Quais são os interesses que existem por trás de um confronto armado? Como justificar os massacres? Não existe uma resposta simples que possa explicar uma guerra. Talvez possamos entender os possíveis motivos, através da reconstituição histórica de quem vivenciou tais batalhas.

Na história do Brasil algumas guerras tiveram grande importância política, como a Revolução Farroupilha e a Inconfidência Mineira, enquanto a Guerra de Canudos e a Guerra do Contestado são conhecidas pelo seu teor religioso. Dizer que Canudos e Contestados foram simplesmente guerras santas, é reduzir sua importância histórica. As conseqüências desses massacres ecoam até hoje no imaginário popular e seu estudo torna-se necessário como instrumento de registro de uma identidade histórica nacional.

De todas as guerras em solo nacional, a mais difícil de ser compreendida é a Guerra do Contestado. Diferentemente de Canudos, o Contestado teve um amplo campo de batalha, abrangendo boa parte do estado do Paraná e Santa Catarina. E os motivos vão além da disputa por terras, englobando interesses econômicos, políticos e religiosos.  Explicar o Contestado não é tarefa fácil para qualquer historiador. Porém o mais complicado, é transpor esta guerra em um documentário, sem correr o risco de abordar o conteúdo de maneira superficial. Tal desafio foi tomado pelo cineasta Sylvio Back no documentário “O Contestado – Restos Mortais”. O filme narra os eventos do Contestado através dos depoimentos de historiadores, testemunhas e parentes de quem vivenciou o massacre, ilustrados por registros de imagens e sons de arquivo, e com direito até de sessões mediúnicas com os “espíritos” envolvidos na guerra. A maneira que Sylvio Back aborda o assunto não acontece de maneira didática e constantemente somos apresentados a diversas opiniões divergentes sobre os fatos ocorridos durante a guerra. Em depoimento ao jornal Diário Catarinense, Sylvio fala: “Eu sou um cineasta que faz filmes que desconfiam, tanto da versão do vencedor quanto da versão dos vencidos e eles também mentem”.


O Contestado é considerado uma guerra inglória, perdida por caboclos simplórios que acreditavam em uma “monarquia celeste”. Os caboclos do Contestado viam a recém formada republica como uma instituição demoníaca, sendo algo que perturbava a aparente ordem na região. A idealização de uma nova monarquia era considerada uma forma de retomar o que foi perdido durante a construção da ferrovia situada entre os dois estados. Durante o tempo do Brasil Império, esta região não interessava muito economicamente ao poder vigente, havendo a possibilidade de um desenvolvimento sócio-econômico autônomo e independente. O processo de modernização nacional trouxe bastante miséria para aquela região e ao iniciarem a guerra, todos queriam expulsar tais “invasores” do local. A Batalha do Iraní marca o início da Guerra do Contestado e um dos principais líderes, Zé Maria, é morto em combate. Ao contrario do que muitos pensavam, a morte do monge Zé Maria contribuiu para continuação da guerra, desta vez com maior participação dos caboclos. Zé Maria era considerado um profeta, por prever muitos dos acontecimentos posteriores a implementação da estrada de ferro e sabia que iria morrer na Batalha do Iraní. Os novos líderes que seguiram no Contestado diziam serem escolhidos pelo espírito de Zé Maria e somente estas pessoas podiam se comunicar com ele. Houve até uma “virgem” de 15 anos que se tornou líder do movimento.  Como distinguir fé de fanatismo? Seria o Contestado uma guerra santa? A guerra iniciada como um motim ganha enormes proporções fazendo o exercito brasileiro intervir na região. O campo de batalha é extenso, com área de 20.000 km², aproximadamente o tamanho do estado no Maranhão. Em quatro anos de guerra foram incendiados mais de 9.000 casas e aproximadamente 20.000 pessoas foram mortas entre civis e militares. Adeodato, o ultimo líder, foi responsável pelo massacre de militares, civis e aliados de guerra. Neste ultimo momento, o Contestado estava desacreditado e mais ninguém estava disposto a lutar em vão. Por fim, o exercito brasileiro dizimou o restante das pessoas envolvidas na guerra. Os poucos que ficaram para contar história lembram o tempo difícil que enfrentaram, sem orgulho de uma conquista, sobrando apenas a amargura da derrota.


Fugindo do senso comum de uma narrativa documental, o diretor Sylvio Back busca dar “voz” aos mortos em batalha através de diferentes médiuns. Situação que para alguns expectadores é entendida como uma manifestação sobrenatural, quando outros interpretam como uma forma de “atuação” por impostores. As sessões espíritas não estão impostas na tela como verdade, ou zombaria. Tudo faz parte do contexto narrativo e cabe ao espectador avaliar o que pode ser encarado como “real”. Sylvio Back interpreta a inclusão dos médiuns desta maneira: “O transe mediúnico é como se fosse um poema, há uma dificuldade em codificá-lo. Os especialistas em literatura dizem que se você explicar um poema ele deixa de sê-lo, é aquela criação humana que exige sempre um novo olhar. E o cinema tem mil olhos também e foi com eles que eu tentei o transe mediúnico como uma narrativa cinematográfica. Eu não sou um espírita militante. Eu tomei com todo respeito e admiração o transe mediúnico como uma instância do consciente coletivo do homem e a espiritualidade e a mediunidade era uma espécie de argamassa que reunia aqueles milhares caboclos fanatizados na sua maioria, as virgens videntes”. Analisando mercadologicamente, a inserção de qualquer temática espírita contribui para despertar a atenção de um publico cativo para as produções ligadas a este segmento. Apesar de que as sessões mediúnicas não são o mote principal do filme, mas pode servir como tema para ser debatido após a projeção.


 O conteúdo do documentário não é destinado ao entretenimento de quem vai ao cinema por lazer, mas sim para aqueles que estão dispostos a compreenderem um período histórico ainda desconhecido para muitas pessoas. As duas horas de duração pode ser considerada cansativa, entretanto o documentário não pode ser acusado como uma obra superficial desprovida de senso crítico. “O Contestado – Restos Mortais” é um dos maiores e mais completos registros históricos deste terrível evento. Posso afirmar com toda certeza, que este documentário será um importante instrumento de estudo sobre o Contestado, servindo como referência de pesquisa para as próximas décadas.

Para os interessados disponibilizo o trailer do filme e o link da entrevista do diretor Sylvio Back ao jornal Diário Catarinense.

http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/variedades/noticia/2012/10/cineasta-sylvio-back-revela-bastidores-do-documentario-o-contestado-restos-mortais-3920717.html


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