quinta-feira, 7 de junho de 2012

Análise de cena do filme Monty Python: Em Busca do Cálice Sagrado

Resgato neste blog um ensaio que eu fiz na época da faculdade (cinema) sobre uma cena extraída do filme Monty Python: Em Busca do Cálice Sagrado. Coloco também o vídeo da cena analisada para melhor compreensão deste ensaio. O texto pode ser um pouco maçante, se comparar com os demais que já postei. Trata-se de um trabalho acadêmico, que teve como objetivo desconstruir um filme a partir de uma cena isolada. Muitos textos sobre cinema que eu estou preparando, devem seguir esta mesma linha, só que com uma linguagem mais leve e pessoal.



Como início deste ensaio, deixo com que Erasmo de Rotterdan faça a introdução a um dos temas abordado, a loucura humana.

“Tudo o que fazem os homens está cheio de loucura. São loucos tratando com loucos. Por conseguinte, se houver uma única cabeça que pretenda opor obstáculos à torrente da multidão, só lhe posso dar um conselho: que a exemplo de Timão, se retire para um deserto a fim de gozar à vontade dos frutos de sua sabedoria”.

A loucura é inerente a todos os seres humanos, seja ela uma válvula de escape para outra realidade, ou também pode ser um modo de como encarar a vida. É também a energia ativa nas ações humanas. Não devendo ser tratada como defeito de personalidade, mas sim, como formador de personalidades e ideologias de cada um.
Na cena analisada do filme, Monty Python: Em Busca do Cálice Sagrado, vemos uma discussão ideológica do rei Arthur com um servo “anarco-sindicalista” e uma serva que não acredita em nenhuma ideologia debatida entre os dois. Usamos da filosofia de Erasmo de Rotterdam, no livro “O elogio da loucura” e de Thomas More, no célebre livro “A utopia”, para exaltar os conflitos existentes na cena, incluindo o ideal de uma sociedade perfeita, idealizado por cada personagem. O filme mostra o que foi a idade média, misturando elementos lendários da saga do rei Arthur e seus cavaleiros da távola redonda, com a própria história do que teria sido a idade das trevas. Os feudos, os reinos, os senhores, os servos, o clero, os cavaleiros em suas cruzadas, o misticismo e outros elementos servem para ilustrar esse período histórico.
No início desta cena, temos um plano aberto com o rei Arthur entrando no feudo, juntamente de seu cavalo “imaginário”, onde seu ajudante é quem simula o som do galope com as batidas ritmadas dos cocos vindo das andorinhas do sul (ou seriam do norte?). Uma trilha sonora “heroica” da ênfase na continuidade da jornada, na busca dos cavaleiros que serão seus fiéis aliados. Neste momento, o mais importante não é o rei Arthur, mas sim dois servos que estão trabalhando na terra. Tais personagens servem para mostrar outra visão da sociedade medieval. Os servos não parecem se importarem com a presença do rei. Muito menos o rei está interessado com o que os servos estão fazendo. Apenas o ajudante do rei continua cumprindo sua função de continuar batendo os cocos e carregar os suprimentos do rei. Outra postura importante é a do rei que está ereto, com o peito estufado e de olhar acima dos demais, exibindo uma falsa ideia de superioridade. Enquanto o seu ajudante tenta acompanha-lo devagar, com olhar reto, sempre cumprindo sua função, sem haver qualquer mudança de comportamento, por apenas obedecer ao rei. “Não há escravidão mais vil e repulsiva, mais desprezível do que aquela a que se submete essa ridícula espécie de homens, que não obstante, costuma ganhar para si de alto a baixo, o resto dos mortais”. Os servos por sua vez estão curvados, sempre olhando para baixo, não como uma reverência ao rei, mais sim pela alienação ao trabalho. 
Tudo o que foi descrito no parágrafo anterior, referente ao primeiro plano, serve para situar o espectador no contexto histórico, dentro dos temas que serão abordados durante toda a cena. No plano seguinte entendemos o motivo do Rei Arthur estar cavalgando naquele feudo, quando vemos um castelo ao fundo. Sabemos que seu objetivo é chegar lá, mas para isso precisa perguntar para um servo, sobre quem é o cavaleiro (considerado como parte da nobreza medieval) daquele castelo. Pois quando o rei tenta pela primeira vez entrar em contato com o servo, começa o conflito que será o ponto de discussão principal da cena. Primeiro ele confunde o servo, que está puxando uma carroça, com uma mulher, por não poder identifica-lo por estar de costas, coberto de pano velho por todo o corpo. Vemos o servo ofendido que não responde a pergunta do rei e diz que não é uma mulher, muito menos um velho. O rei tenta apenas chama-lo de homem, mas o servo insiste em dizer que ele não é um servo qualquer, pedindo para que chame pelo nome, Denis. O servo apenas quer ser reconhecido como um indivíduo e não como mais um no meio da multidão. O rei tenta se redimir mais ainda justificando sua confusão, por não conseguir identifica-lo só porque estava por trás dele, apenas com toda aquela roupa que dificultava ainda mais tal reconhecimento. Mesmo assim Denis não se convence e reclama que o confundiu só porque trata os outros como inferiores. Arthur explica seu tratamento de superioridade, porque ele é o rei e isto faz parte de um comportamento de como um rei deve ser. “Consiste as obrigações de um homem que é posto a testa de uma nação. Devem dedicar-se dia e noite ao bem público e nunca ao seu interesse privado; pensar exclusivamente o que é vantajoso para o povo; Ser o primeiro a observar as leis de que é autor e depositário, sem desviar-se nunca de nenhuma delas.”. Irritado Denis confronta o rei, dizendo que não acredita naquela hierarquia social que é imposta a ele, colocando como um explorador da classe trabalhadora. Durante este percurso, em que o rei está seguindo Denis, na tentativa de arrancar uma informação, os dois param perto do barro, onde está uma serva (que é interpretado por um homem), onde a reconhecemos pela voz. A serva ajoelhada no barro cumprimenta o rei, sem saber quem ele é. O rei se apresenta e em seguida faz para ela, a mesma pergunta que fez para Denis. A serva intrigada, pergunta para Arthur: “Rei de quem?”, desconhecendo a valor da hierarquia social dentro de sua realidade. Para os servos o rei é apenas um forasteiro, um intruso que age com preconceito diante de outra realidade.
Assim começa um debate de perguntas, na qual o rei tenta explicar que ele é o senhor de todos os feudos dos bretões. Mesmo assim a serva desconhece quem são os bretões. Ele explica que ela também faz parte deste reino e por consequência lhe devia obediência. “Todos vós estais convencidos, por exemplo, de que um rei além de muito rico, é o senhor de seus súditos”. Os dois servos estão trabalhando na lama (uma representação dos recursos escassos que os camponeses têm para sobreviverem), ela coloca para o rei que toda aquela explicação não condiz com sua realidade: “Rei? Eu não tenho nenhum rei. Eu vivo numa sociedade de coleta autônoma”. “Por conseguinte, são perfeitamente felizes os homens que, sem ter qualquer relação com as ciências especulativas e práticas, tem como único guia a natureza, a qual não possui nenhum defeito e nunca deixe que se percam os que seguem fiel e exatamente os seus passos, sem a pretensão de sair dos limites da condição humana”. Para a serva, o seu mundo se resume apenas no trabalho para a sobrevivência e não na ideologia de coletividade anônima de Denis. Portanto a presença do rei não afetaria em nada o modo como ela vê o mundo, preferindo viver indiferentemente a tudo isso. 
  Ao contrário do pensamento da serva, Denis coloca-se como ser crítico diante da realidade, com um discurso engajado. Ele se refere, como um membro de uma “autocracia”, que por sua vez tem sua estrutura funcional. Pois apesar de renegarem a figura de um mandante, a tal sociedade idealizada tem sim seus líderes (escolhidos de maneira democrática), que revezam suas funções dentro da comunidade. “Utopia é toda proposta ideal de organização da sociedade em que, por meio de novas condições econômicas, políticas e sócias, se pretende alcançar um estado de satisfação geral”.  Ao contrario do pensamento utópico, o marxismo (embutido no discurso de Denis, por ser pragmático) prefere empregar a ideologia em suas ações para reorganizar uma sociedade. Mesmo assim, as duas ideologias propõe uma quebra na divisão de classes dominantes. O ponto de vista de Denis mostra também uma “gênese” de como seria a formação da burguesia. Havia uma oposição ao controle feudal dentro dos burgos, onde acontecia o livre comercio, com os produtos vindos do oriente. Com o crescimento dos burgos, diversos feudos foram extintos, iniciando o fim do período medieval. Séculos mais tarde aconteceu uma nova revolução burguesa na França para derrubar a monarquia, sendo inseridos socialmente os ideais iluministas, que muito assemelham em teoria com o discurso de Denis. Inclusive o trabalho dos dois servos no barro, pode significar neste ponto de vista o princípio da construção do que seriam os burgos, os muros que os separavam da sociedade e estilo de vida medieval.
A serva ignora também discurso de Denis, pois novamente aquela ideologia não afeta a sua realidade. Fica evidente que ela não participa diretamente de nenhuma das duas versões de sociedade (o feudo e autocracia). Pois quem realmente tinha naquela época conhecimento das extensões dos poderes que o rei possuía por todo o seu reino e se realmente importava em conhecer a estrutura de uma sociedade feudal para sobreviver? A extensão de um feudo podia ser tão grande que era possível ter existido camponeses que ignoravam a ideia de uma hierarquia social. Mesmo assim Arthur insiste em convencê-los de que ele é o rei (mesmo que nenhum deles tenha votado), o escolhido para ser o senhor do reino perfeito. Uma alusão messiânica, do que seria a volta de um escolhido na salvação da humanidade. Arthur acaba contado a lenda de Excalibur, utilizando de simbolismos religiosos e mitológicos. “Portanto a verdade é que os outros deuses não são tão bons e benéficos para todos os mortais, sendo a loucura a única deusa que acumula de favores todo o gênero humano”. Denis zomba da lenda, mostrando que nada disso afetaria sua realidade e o que Arthur falou não passam de loucuras. Arthur fica irritado, descendo do “morrinho” (ou rebaixando seu nível de nobreza), para bater em Denis, que começa a gritar: “A violência é inerente ao sistema!”. Então neste mesmo plano aparecem mais dois servos, que quase não ficam em quadro, fazendo com que Arthur desistisse de confrontar as ideias de Denis e continuar sua jornada.
E a dúvida sobre o castelo, que tanto o rei queria saber? Na verdade ficou sem solução, pois Arthur se irrita e se segue viagem na busca dos cavaleiros. Seria aquele rei do castelo, um senhor feudal? Quem sabe um cavaleiro ausente na proteção do feudo? Ou seria aquele um castelo vazio, mostrando que aquilo seria apenas um símbolo de poder invisível? Todas essas hipóteses podem ser aceitas, servindo como explicação para o distanciamento dos servos com essa hierarquia de classes.
 Mas nada disso importa, pois estamos trabalhando no campo imaginário e também da loucura dos personagens. Não temos uma verdade em jogo, mas sim três pontos de vistas divergentes, com várias vertentes de interpretações. Pois o ideal medieval era apenas uma loucura da alta hierarquia, que pensava ter controle absoluto do povo. Porém a alta hierarquia não imaginava que pouco a pouco os camponeses iriam se rebelar contra o sistema, acabando com o feudalismo. O heroísmo de Arthur também é ridicularizado com o cavalo imaginário, que na verdade é um homem batendo os cocos para simular um galope. “Mas não será também verdade que a loucura foi autora de todas as famosas proezas dos valorosos heróis que tantos literatos eloquentes elevaram as estrelas? É a loucura que forma as cidades; Graças a ela é que subsistem os governos, a religião, os conselhos, os tribunais; E é mesmo lícito asseverar que a vida humana não passa, afinal, que uma espécie de divertimento da loucura”. Os servos em total discordância, mesmo vivendo a mesma realidade, cada um tem sua própria personalidade e distinção para acreditarem no que quiserem. O castelo pode representar que não há rei, apenas personagens que acreditam em suas funções, pois não há ninguém superior comandando-os de verdade. Há muitas hipóteses e muito que ser aprofundado nas leituras de cada personagem, mas eles nos lembram de que nada deve ser levado muito sério, principalmente o filme.

“Querer, porem, acabar com essa ilusão importaria em perturbar inteiramente a cena, pois os olhos dos espectadores se divertiam justamente com a troca das roupas e a das fisionomias. Vamos à aplicação: Que é afinal, a vida humana? Uma comédia. Cada qual aparece diferente de si mesmo; cada qual representa seu papel sempre mascarado, pelo menos enquanto o chefe dos comediantes não faz descer do palco. O mesmo ator aparece sobre varias figuras, e o que estava sentado no trono, soberbamente vestido, surge em seguida, disfarçado em escravo, coberto por miseráveis andrajos. Para dizer a verdade, tudo nesse mundo não passa de uma sombra e de uma aparência, mas o fato é que esta longa comedia não pode ser representada de outra forma”.  

Citações extraídas dos livros:
- O Elogio da Loucura: Erasmo de Rotterdan
- A Utopia: Thomas More

2 comentários:

  1. Adorei! E lembrei da minha análise, também da época, que resgatei faz pouco tempo e resolvi investir nela. Erasmo e, principalmente, Thomas têm um lugar especial na minha prateleira. Poderias até ter incluído mais o Marx nessa! Mas ficou ótimo sem ele!

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  2. Boa tarde, Thiago.

    Sou editor do site "O Ministro do Andar Tolo", o mais completo site sobre Monty Python em português.

    Quero criar um espaço para postar os estudos sobre o grupo, e achei o seu trabalho muito interessante.
    Gostaria de saber se posso linká-lo no meu site: http://andartolo.wordpress.com/

    andartolo@gmail.com

    Abraço

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